Um veículo de intimidade

Um veículo de intimidade

O silêncio é sempre um ponto de partida para todas as possibilidades. Proporciona novas existências e construções, o nascer da obra e da palavra, uma oportunidade para o inaudito, o desconhecido, o não criado.

Isabel Alves trouxe ao Porto uma possibilidade e uma experiência: a de encontrarmos ou reencontrarmos Ernesto de Sousa através da sua experiência pessoal, íntima e intransponível, aquela que também passou pelo Porto ao longo de anos de arte e vida, desde 1966. Esta sua aula aberta a todas as possibilidades foi pautada por diversos momentos de silêncio, sabiamente utilizado como contexto para mostrar momentos e memórias da vida e obra de um artista e pensador pluridisciplinar, para quem a obra de arte deveria comportar em si mesma uma capacidade de transformação. O que fez, através da sua obra, quebrando todos os silêncios.

Isabel Alves construiu nesta apresentação uma viagem pelas viagens de e com Ernesto de Sousa: as verdadeiras viagens consequentes de um espírito inquieto e indagador, de uma procura de  experiências, relações e conhecimento, e as  outras viagens – pela fotografia, cinema e cineclubismo, teatro, música, ensaísmo, rádio, arte popular, crítica de arte, pintura e escultura …, pela cultura.

Através de Isabel Alves, nesta aula “Oralidade, Futuro da Arte?”, foi possível conhecer documentos únicos, alguns ainda desconhecidos, testemunhos de um percurso incontornável e indissociável da ideia de futuro da arte que Ernesto de Sousa defendia: a de que o regresso à oralidade se traduz na ausência de fronteiras e limites entre todas as artes, no fim do isolamento da obra de arte e da sua produção, na procura de um grau zero da acção e da liberdade, no entendimento da arte como uma “realidade múltipla e contraditória”[1], cuja multiplicidade está intrínseca à liberdade, esta enquanto uma das suas “mais ricas potencialidades”.[2] A ideia de que tudo está por fazer é a ideia de um futuro, de uma procura que não se acomoda no carácter definitivo e irrepreensível do saber. Isabel Alves partilhou imagens, palavras e filmes que comprovaram esta defesa da produção dinâmica, complementar e transversal da obra de arte, num contexto de total multiplicidade, transdisciplinaridade e intertextualidade:

Fotografias dele e com ele, com amigos, com artistas e músicos que atravessaram a sua vida, participantes dos cursos de cinema experimental, das viagens no Mini, no Guincho, em Malpartida. O genérico de D. Roberto, filme premiado no festival de Cannes, e a vontade de o ver na íntegra, numa próxima vez. Imagens de algumas “quimiografias”, expostas na Galeria Quadrum, em Março de 1986, na exposição Esse Ouro Dantes. Um diagrama do Fluxus, magnífico. A festa, “a alegria é a coisa mais séria da vida”[3]. As exposições, encontros, festivais. O artista como colaborador, as pessoas que o rodeiam e interferem na sua obra. Alternativa Zero. A música, Jorge Peixinho, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa. As imagens escolhidas por Ernesto de Sousa para as suas aulas de artes gráficas, que recolhia das revistas, da rua, dos livros. Ver através dele.

Esta sessão com Isabel Alves terá, talvez, sido um começo. Outros encontros seriam essenciais para um aprofundamento do conhecimento da vida e obra de Ernesto de Sousa, uma vez que ela transporta consigo uma imensidão de imagens que interligam arte e vida na pessoa de Ernesto de Sousa. A arte e a vida que ele não quis distinguir ou separar, a arte como vida, a vida como arte.

Um espólio de valor incontestável, de carácter fundador e plural, que não pode ser perdido ou esquecido. Nas palavras de Ernesto de Sousa, o mesmo objecto pode ser encarado como determinante das nossas distintas individualidades. O conhecimento e o uso desse objecto fazem parte da nossa intimidade. Isabel Alves também trouxe ao Porto um veículo para a intimidade de Ernesto de Sousa com os outros, connosco, num processo que valoriza a nossa própria experiência e conhecimento.

 

Ana Pais Oliveira (texto)

 

 


[1] SOUSA, Ernesto de, Oralidade, Futuro da Arte?, 1968, p. 24.

[2] SOUSA, Ernesto de, Op. Cit., p. 24.

[3] Frase de José de Almada Negreiros, autor que marcou definitivamente a vida e obra de Ernesto de Sousa.