• 31.05.2011

Cara a cara


Cindy Sherman

Sin título (ABCDE), 1975 / 1985
© Cindy Sherman / SAMMLUNG VERBUND, Vienna


Cara a cara

O que dizemos com o rosto quando (achamos) que não dizemos nada?
O que pode um retrato? Respostas a partir de amanhã no 14.º PhotoEspaña. Mais de 60 exposições em que Gerardo Mosquera, o novo comissário, nos põe a comunicar. Cara a cara.

Ele está em toda a parte. Nas câmaras do banco e do supermercado, na Internet, no telemóvel dos amigos, nos documentos que temos de mostrar no ginásio ou no aeroporto, no passaporte e na carta de condução. Género da fotografia transformado em máquina de comunicação, o retrato saiu das molduras e dos álbuns de família, das paredes dos museus e das galerias, e impôs-se quase sem limites.

Dizem os especialistas que estamos numa era do retrato , porque é importante ver e ser visto, porque é essencial ter à mão uma ferramenta de identificação. Mas também há quem dele se sirva para construir discursos artísticos mais complexos que podem encerrar mensagens políticas, sociais, estéticas ou tudo isso ao mesmo tempo. E este é o retrato que mais atrai Gerardo Mosquera, o novo comissário do PhotoEspaña, o festival de fotografia e artes visuais que a partir de amanhã se instala em Madrid, com extensões em Lisboa, Cuenca e Alcalá de Henares. Um retrato em que a representação do sujeito, explica este cubano que sucede ao curador português Sérgio Mah, é muitas vezes o menos importante.

Alfredo Jaar é um destes artistas que está mais interessado no retrato como meio do que como género. Cem Vezes Nguyen, a exposição que se inaugurou sexta-feira no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, é a primeira desta 14ª edição do PhotoEspaña e fá-lo regressar – e a nós com ele – à Hong Kong dos anos 90 e ao problema dos refugiados vietnamitas.

O templo de Nguyen

A exposição de Jaar é feita com base em quatro retratos de uma menina que em 1990 vivia num dos sete campos de refugiados de Hong Kong. De passagem por Lisboa para a inauguração da exposição, este arquitecto chileno de 55 anos que vive em Nova Iorque explicou como surgiu o projecto e o que queria mostrar. Já naquela altura passava duas horas por dia a ler jornais e deparou-se com as notícias de 80 mil refugiados vietnamitas que eram forçados a voltar a casa. Muitos, como a pequena Nguyen, não conheciam o país a que deviam regressar, muitos ameaçavam suicidar-se. Alfredo Jaar decidiu, então, viajar para o território e esteve três semanas nos campos a trabalhar, falando com representantes do governo e organizações não governamentais. Fez centenas de fotografias, mas foi Nguyen que o prendeu. É o rosto desta menina – uma sequência de quatro retratos multiplicados pelas 24 combinações possíveis – que vemos em Cem Vezes Nguyen, uma obra que é montada pela primeira vez no Museu Berardo, 17 anos depois de Jaar a ter dado por concluída e a ter publicado em livro.

“Quando cheguei e vi isto, comecei a chorar”, diz ao P2. “Isto é o templo de Nguyen. Vieram-me à cabeça tantas imagens daqueles dias, as conversas com as pessoas, os passeios no campo com ela pela mão…” Na sequência original ela começa por sorrir, de cabeça baixa, de forma muito natural, mas depois evolui e, no quarto retrato, troca o sorriso dos dois anteriores por um olhar nostálgico, uma tristeza que parece procurar cúmplices. Alfredo Jaar não sabe o que foi feito de Nguyen, mas sonha reencontrá-la. O seu retrato traz-lhe uma certa melancolia, uma “saudade” – é ele que diz a palavra, como um sabor brasileiro – que o comove.

É precisamente esta capacidade de transformar uma repetição matemática de uma sequência de retratos num instrumento de humanização que fez Mosquera, crítico e historiador de arte que já foi comissário do New Museum de Nova Iorque, programar Cem Vezes Nguyen na primeira de três edições do PhotoEspaña que terão a sua assinatura curatorial (no próximo ano o tema será a relação entre o contexto e a internacionalização no que à arte diz respeito e, em 2013, o erotismo e a forma como evoluiu a sua representação).

“Os artistas contemporâneos estão a usar muito o retrato, mas não tanto dentro das suas funções originais, de identidade, de representação, de memória”, diz Mosquera. “Estão a usá-lo como meio para construir mensagens que podem ser de carácter político, humano e estético, como aqui com Alfredo Jaar, ou totalmente diferentes, como por exemplo, o trabalho do [fotógrafo alemão] Thomas Ruff, que mostramos em Madrid. É claro que a Ruff não lhe interessa retratar todos aqueles seus amigos para olhar para os seus mundos interiores ou para fazer uma qualquer aproximação estética. Interessa-lhe fotografá-los e repeti-los para fazer uma mecanização das subjectividades contemporâneas. Mas os dois usam o retrato como ferramenta de comunicação, como instrumento de criação.”

Ruff e a norte-americana Cindy Sherman são as duas estrelas de uma das propostas centrais deste PhotoEspaña. Em 1000 Caras/0 Caras/1 Rosto o seu trabalho é apresentado ao lado do de um mexicano (praticamente) desconhecido, Frank Montero Collado. A contemporaneidade da investigação identitária de Sherman – cada um dos seus auto-retratos tem personalidade própria – e da padronização de Ruff, que fotografa os sujeitos sempre com as mesmas condições de luz ou enquadramento e sem expressão, de modo a que, repetidos ao infinito, tenhamos tendência a pensar que se trata de uma mesma pessoa, contrasta, assim, com o trabalho de um homem do século XIX sobre o qual pouco se sabe.

É por querer explorar as várias dimensões do retrato e o seu potencial de comunicação – “tratar a cara como código de barras e muito mais” – que Mosquera reuniu no festival uma multiplicidade de exposições que pretendem levar ao extremo um conceito que já tinha orientado os três anos de comissariado de Sérgio Mah (2008-2010) – o do fotográfico. “Quero que o PhotoEspaña exponha trabalhos de grande transversalidade que pensem a fotografia como base da imagem contemporânea, ela que está em todo o lado, da nossa vida privada à nossa vida oficial. Ela rodeia-nos e está de tal modo misturada com outros meios que, depois de ter vencido a batalha de ser considerada arte, terá de se concentrar em vencer a de voltar a ser considerada fotografia.”

Retratos com dois mil anos

A ideia do “fotográfico mais do que a fotografia” levou a projectos como o concurso online de retratos com webcam e à exposição Retratos de Fayum, do Museu Arqueológico Nacional. Nela se mostram, em associação com um vídeo do artista albanês Adrian Paci, 13 retratos feitos entre os séculos I e IV, “o único exemplo de pintura de cavalete da antiguidade clássica que ainda se conserva”, oriundos de necrópoles egípcias. “São peças de grande contemporaneidade porque são híbridas”, argumenta Mosquera. “Dentro da tradição greco-romana, estes retratos são feitos por pintores gregos que vivem no Egipto dominado pelo império romano. Fazem-se para ser usados em cerimónias funerárias de acordo com a tradição egípcia.” E o que é que isto quer dizer? Que o corpo é mumificado e o retrato é posto sobre a cara. Depois o corpo enfaixado é fechado num sarcófago que, em vez de ter uma tampa tradicional sobre a cabeça, tem uma janela de vidro que deixa ver aquele rosto pintado.

“Todos os desenhos do sarcófago são à maneira tradicional egípcia, cheia de ângulos, esquemáticos, o que cria um contraste incrível com aquele rosto realista. O que procuravam era que o retrato fosse o mais fiel possível para facilitar a identificação do morto ao chegar ao outro mundo. São como fotos de passaporte, arrebatadoras.”

Mas Mosquera garante que há outros motivos de arrebatamento neste gigantesco festival – até 24 de Julho há 66 exposições dispersas por 61 locais e com 370 artistas de 55 países – que na última edição foi visitado por mais de 700 mil pessoas. O Poder da Dúvida, comissariada por Hou Hanru, e Ron Galella: Paparazzo Extraordinaire!, são dois deles, o primeiro inclui fotografia e instalação de 16 artistas, na sua maioria da China e da Europa ocidental, o segundo “procura legitimar a actividade dos paparazzi” através dos instantâneos de um “grande fotógrafo popular”, que o comissário faz questão de apresentar num território geralmente associado à intelectualidade madrilena, o Círculo de Belas-Artes.

48, o filme da portuguesa Susana de Sousa Dias centrado na resistência à ditadura de Salazar, e Face Contact, que reúne 31 artistas, como Shilpa Gupta e Hans-Peter Feldmann, e é um dos “marcos temáticos” deste ano, são outras das propostas.

Gerardo Mosquera não esconde que gostaria de ter um festival mais internacional – “seria bom chegar à América Latina, em particular ao México e ao Brasil, e contar com mais artistas asiáticos” -, mas está disposto a esperar. O tempo, diz, é hoje do retrato, amanhã será de outra coisa.

Por Lucinda Canelas
2011/05/31, P2 – Publico páginas 4/5