• 30.05.2011

Artes Gráficas, Veículo de Intimidade

Artes Gráficas, Veículo de Intimidade, As Artes Gráficas e a Cidade

Em entrevista a Fernando Tunhas, Ernesto de Sousa fala do ensaio sobre grafismo, Jornal de Notícias, 1965/08/5:

FT: O seu último livro é justamente um ensaio sobre o grafismo.

-ES: Com efeito. A propósito da recente exposição de artes gráficas do pintor Armando Alves, tive oportunidade de escrever um pequeno ensaio em que procurei exprimir a minha certeza de que o grafismo é, não só o denominador comum das diferentes formas de expressão do homem moderno como também o sinal de uma nova civilização em que as palavras e os objectos do nosso convívio readquirirão uma nobreza perdida.

FT: Esse ensaio revela um interesse muito especial pela obra dos pensadores fenomenológicos. Não estará isso em contradição com a sua habitual defesa do realismo?

-ES: Penso que na perspectiva do homem moderno, a fenomenologia, como disciplina deontológica do conhecimento, não pode ser ignorada. Se o mais íntimo é por vezes o mais externo também podemos dizer que o mais íntimo do realismo se pode perspectivar a partir da redução eidética. Assim o entenderam autores como Tran-Duc-Tao e Desantl que discutiram a fenomenologia em face à dialéctica. Note-se sobretudo que a compatibilidade que proponho entre certos aspectos da fenomenologia e do realismo é a posição de um pensamento que se quer dinâmico.

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O que é uma laranja? Suponhamos que devo fazer compreender a alguém o que é uma laranja; e forçosamente, o que é uma laranja para mim. Como é óbvio, posso fazer duas ordens de coisas, distintas, mas que porventura se completam e se exigem mutuamente

Proporciono a esse alguém a experiênciada laranja.

Explico-lhe o que é a laranja.

Os termos daquela experiência porém podem ser diversos, e variados os seus limites: comprei a laranja, ou fui colhê-la a um pomar? Ensinei ou não a descascá-la? Há um número infinito de coisas que uma laranja é, experimentalmente. Por outro lado, que terei dito para explicar que coisa é a laranja, limitado como é óbvio, pelo que eu próprio sei? Que é um fruto de tal espécie de árvores; de tal e tal família botânica. Que contém vitamina C, que se colhe em determinada época do ano, em determinadas regiões. A sua importância económica, cultural… Enfim, a verdade é que com estas duas operações, não terei dito ou feito experimentar tudo o que a laranja é para mim. O chá de laranja, a flor da laranjeira, as laranjas de certo quadro de Manet, e as laranjas pintadas de branco do último filme de Antonioni, também são, para mim, a laranja. Podemos dizer, todavia, e num primeiro aproche desta questão, que uma longa experiência comum, e uma intrincada rede de mútuos conhecimentos relacionados com aquele objecto, conduzir-me-ão a mim e ao outro, àquilo a que Sartre chamou, sugestivamente, uma plenitude empírica, e a uma possibilidade de acção comum, um ritmo comum. A certa altura poderei dizer: nós sabemos o que é uma laranja. O que não quer dizer, evidentemente, que o mesmo objecto não possa ser encarado como determinante das nossas distintas individualidades, eu e o outro. Digamos que até certo ponto, a laranja, o seu conhecimento, o seu uso, a sua economia fazem parte da nossa intimidade.

Numa primeira referência ao tema central desta breve meditação diríamos, falando pois de artes gráficas, que elas constituem – como veremos – veículo considerável (através do objectos da nossa experiência e do nosso conhecimento) para a promoção da minha intimidade com os outros. Mostraremos também que uma das suas específicas razões de ser consiste em que elas são a síntese, ou o lugar da síntese (plástica e literária) de uma explicação sobre os objectos do nosso conhecimento e de algo que sugira a experiência que se tem desses objectos. Mas conhecimento implica também acção prática, capacidade de agir, o que para lá da simples experiência completa e forma a nossa apreensão do real. Constituindo-se, pois, no sentido de uma percepção comum, as artes gráficas resultam também num estímulo ou guia para a acção prática. Propositadamente não referimos ainda aquilo por que as artes gráficas são mais comummente conhecidas, e que afinal não constitui termo necessário nem suficiente para a respectiva definição : o seu carácter repetitivo. Em geral, mas não necessariamente, a obra de arte gráfica é prevista para ser reproduzida a um número variável de exemplares, aproximativa ou rigorosamente iguais (processos de reprodução manual ou mecânica). Neste capítulo porém, devemos sublinhar que as artes gráficas não pertencem, por sua vocação mais rica, ao número das artes cujo executante não é o autor (como a música, por exemplo). Por mais mecânico e técnico que seja o processo de reprodução (impressão em geral, fotogravura, heliogravura, offset, serigrafia, etc.), o autor da obra de arte gráfica deverá intervir, controlar, dirigir todo um exército de técnicos, propriamente ditos, e de operações, as quais deixam sempre margem à interpretação e à criação finais. É claro que este autor, que cria o seu próprio objecto estético, é muitas vezes o intérprete de uma criação alheia (por exemplo, o artista gráfico que se propôs pôr-em-livro a obra de um autor literário). Nestes casos, a sua função é semelhante e levanta os mesmos problemas do encenador de teatro, que é um criador intermédio, um intérprete, e um criador original. Não discutiremos aqui esses problemas que são, aliás, de primeira importância, nomeadamente no que se refere à necessária (mas crítica) fidelidade à obra que foi objecto de uma criação anterior, e que é ao mesmo tempo fim e meio.

Mas precisemos ainda o que entendemos por definição fundamental das artes gráficas. Suponhamos que estabeleço um quadro das letras bancárias descontadas (em milhares de contos), nos bancos portugueses, ente 1855 e 1865. A diferença que há entre este quadro e o gráfico que estabelecerei em seguida, onde o crescimento daquela operação da nossa história económica, é representado por uma linha contínua num sistema de coordenadas cartesianas, é que neste último caso, socorrendo-me de um processo gráfico elementar, eu procuro dar a outrem um entendimento perceptivo, digamos assim, do facto, da coisa em questão. Ora este gráfico só pode existir esteticamente; tem que ser desenhado, e só então constituirá a imagem que se pretendia para não só explicar como sugerir determinada coisa. Realizado esse desenho, com mais ou menos qualidade estética, terá sido criada uma obra de arte gráfica (independentemente da sua repetição). Acontece porém que, se a obra se destina a ser repetida, o autor utiliza ou prevê a utilização de materiais e processos gráficos (no sentido comum do termo: tipográficos, serigráficos, litográficos, etc.) com os quais conta até à realização última do exemplar standard, e pelo qual é, deverá ser, inteiramente responsável. Voltemos ao exemplo da laranja. Excluída, por razões óbvias, a experiência directa (que pressupomos mais ou menos realizada) a obra de arte gráfica permite-me entrar na compreensão (e portanto, na apreensão) do-que-é-a-laranja por caminhos não exclusivamente conceptuais; proporciona-me não só conceber, como imaginar a laranja. Com as artes gráficas um determinado esquema operatório de ideias faz-se corpo através das correspondentes imagens, mesmo quando estas se reduzem, eventualmente, a uma visualização do que pode ser expresso pela palavra (a arte do livro, por exemplo).(…)

A IMAGEM E AS MOTIVAÇÕES

Analisemos um pouco esta palavra imagem. Um objecto-uma laranja-tem, para mim, determinadas qualidades e características. Essas qualidades e características enchem um espaço e exigem um tempo : a imagem é a sua representação sensível; é um apelo ao que sabemos do objecto, é a presença do ausente. Com efeito tais qualidades e características (realmente ausentes) encontram-se por sugestão, presentes na imagem. Mas há mais. A imagem artística – pois é desta que fundamentalmente se trata – para lá da sua função representativa (ou evocativa) tem uma personalidade própria, uma absoluta originalidade. Na imagem ressoa tudo. o que sabemos da coisa representada’, mas ela reveste-se do dinamismo agudo da sua presença, e dessa presença lhe vem todo um passado e um projecto de futuro. A imagem artística caracteriza-se pois pela sua imediaticidade e, simultânea e contraditoriamente, é determinada. É neste sentido que nos referiremos às suas motivações, que se podem determinar como conceito e experiência. É precisamente a análise dessas motivações que nos levaria para um território oposto ao de Sartre, cujo estudo da «compreensão d’outrem» conduzirá, como já foi observado (Merleau-Ponty) a um «solipsismo colectivo». (…)

«As primeiras palavras-frases da criança encaram comportamentos e acções que tanto pertencem a outrem como a si próprio». Este transitivismo conserva-se no adulto, pelo menos na ordem ambígua dos sentimentos: «outrem e eu fomos e conservamo-nos compreendidos numa rede única de comportamentos e num fluxo comum de intencionalidades». Esta observação, se não nega a plenitude empírica de Sartre, apela pois para algo de mais fundo e originalmente, imediatamente social. Arriscaríamos aqui -apenas como hipótese de trabalho futuro – uma explicação para o carácter que referimos da originalidade, da imediaticidade de toda a imagem, e em particular da imagem artística. Se aceitamos como o fenomenologista que «a cada imagem nova, um mundo novo» (Bachelard), o que aliás não está, em contradição com uma das afirmações básicas do humanismo («o homem faz-se a si próprio»). – parece-nos óbvio que o fundamento daquela originalidade é o social entendido como o fizemos. Utilizando a noção de transitividade compreender-se-á a uma nova luz (despida de todo o carácter mágico ou transcendental) as análises de um Bachelard sobre a imagem poética. «O poeta não me comunica o passado da sua imagem, mas ela ganha imediatamente raiz em mim». Isto acontece de facto, mas o seu fundamento é o social original. Fundamento apenas, porque haverá sempre- algo de absolutamente novo na criação: projecto e proposição. Esta capacidade transformadora da imagem nova corresponderá em arte, e particularmente em arte gráfica, à sua vocação mais íntima e mais rica, à sua realização mais nobre. Não acontece em média, acontece apenas quando a imagem é, ou participa de um acto de apropriação das circunstâncias, e anuncia uma transformação da respectiva história. Quando a imagem nova atinge esta nobreza estamos diante do facto, afirmado numa das « Teses sobre Ieuerbach«, « de que são precisamente, os homens que modificam as circunstâncias». Mas esta proposição de futuro não é arbitrária: é também motivação, precisamente na medida em que se apresenta como a resultante dos projectos de homens compreendidos em determinada situação.
Dentro das exigências de um pequeno ensaio sistematizaremos estes dados, lançando o esquema de uma análise futura das motivações da imagem gráfica – compreendidas no contexto mais geral das motivações de toda a imagem artística:

a) Toda a imagem artística assenta mais ou menos na transitividade objectiva existente entre eu e o outro; funda-se no ser social que somos originalmente. Neste sentido, na origem das artes, gráficas encontraremos, as palavras-frases dás crianças (Wallon); os sinais-coisas da pictografia (Marcel Cohen); e a participação recíproca do «sujeito» ao «objecto» do homem primitivo (Levy-Bruhl).
b) Outra ordem de motivações básicas resulta da plenitude empírica, através da qual se forma, se altera e se reforma a subjectividade individual, num mundo único e intersubjectivo. Essa plenitude é o resultado de um entrelaçamento de esquemas conceptuais, de experiências e de sistemas diversos de linguagem. Às artes gráficas interessa particularmente considerar- os sistemas de visualização do que pode ser expresso pela palavra, por um lado; e por outro, todaa uma linguagem indirecta que se manifesta através’ da expressão plástica. (Neste sentido, as catedrais – «bíblias dos pobres)>, como os sinais-palavras dos pictogramas, aparentam-se às artes gráficas).
c) Na melhor das hipóteses (pois parece haver aqui a base de uma estética especulativa, uma exigência de valor; lembremos v. g., a referência ao «infinitamente belo» de Hegel) a imagem artística pode ser criadora de humanidade, fazer um mundo novo. Esta apetência de futuro pode também entrar na conta das motivações da imagem artística. Neste capítulo ainda, assinalaremos uma ambiguidade que afecta particularmente a imagem gráfica: é que o seu carácter inovador, não prescindindo do impulso criador individual, tem com frequência uma efectivação altamente colectiva. A renovação gráfica é, regra geral, um movimento colectivo (precisamente… como as catedrais).
d) Tendencialmente a imagem gráfica verifica-se segundo um modo material repetitivo. A repetição da mesma imagem a muitos exemplares pode constituir, para além das contingências técnicas, profunda motivação (estética antropológica, etc.).

AS PALAVRAS E A LINGUAGEM GRÁFICA

As primeiras manifestações da escrita caracterizam-se pelo seu carácter sincrético – e oferecem em germe todas as determinações daquilo que entendemos modernamente por arte gráficà. A partir dai podemos estudar a génese deste meio de comunicação entre os indivíduos de uma mesma sociedade; promotor, desde o início, de intimidade. A pictografia (do latim «pintar» e do grego «traçar») é a primeira manifestação da proto-escritura: consiste, em geral, numa apresentação de partes de discurso, sem decomposição em palavras. Estas histórias-sem-palavras, imagens-situações ou sinais-coisas não têm portanto ligação com qualquer língua determinada. Verificando-se em sociedades extremamente particularizadas, a sua vocação é universalista e sincrética: mais do que uma operação activa de significação tais sinais-coisas são fragmentos do mundo real, e manifestam-se transitivamente entre o sujeito pensante e a coisa pensada. A forma é modulação do mundo, familiar com o seu-mundo, e simultâneamente, ambiguamente, significante. Não estando comprometida com qualquer linguagem particular, a pictografia é uma manifestação de produtividade da linguagem, na sua origem mesmo. Esta origem revela definitivamente a vocação de toda a linguagem: o universalismo e a síntese. De um modo geral, a proto-escritura é constituída por autênticos ideogramas, e a sua função é mnemónica. Ora, tal é também a vocação das artes gráficas.

Mas a conquista de um autêntico universalismo teria que passar, dialecticamente, pela negação do universalismo. O mito da torre de Babel, e a compreensão vaga de que a palavra -que . devia servir para unir e tornar íntimos os homens – se voltava contra eles; que a divisão da humanidade em povos distinguidos por diferentes formas de linguagem, corresponde a uma autêntica queda, passo atrás necessário na apreensão da humanidade por si própria. Os sinais-palavras, a escrita por palavras figuradas, acontecem com a constituição das primeiras cidades; segue-se-lhe o aparecimento dos sinais-sons (letras). Com esta evolução todos os sistemas destinados a oferecer à vista o que pode ser expresso pela palavra, apresentam-se definitivamente relacionados com as. diferentes linguagens particulares e são elaborações analíticas, exigindo uma profunda capacidade de abstracção relativamente às motivações originais. Apesar disso quando duas pessoas de linguagem diferente se encontram, falam por sinais, reencontrando com mais ou menos expontaneidade os sinais-coisas da proto-escrita. Mas um resíduo da modulação do mundo original encontra-se como que agarrado às simples letras, por mais abstracta que seja a sua função média. É o que os poetas nunca deixaram de compreender ou sentir. A célebre sinestesia proposta por Rimbaud, não é mero divertimento, corresponde pelo contrário a uma inquietação profunda:
…Vo elles / Je dirai quelque jour vos naissances latentes.

E o divertimento de Alexandre O’Neill, ao meditar graficamente com os sinais ortográficos é mais do que divertimento:

Serás capaz / de responder a tudo o que pergunto ?…

É pelo menos o sentimento de um diálogo necessário com os sinais do nosso abstracto entendimento. É o sentimento de uma unidade perdida e desejada, através da floresta das abstracções secas de uma sabedoria fragmentada até à náusea. L’homme y passe à travers des forêts de symboles / qui l’observent avec des regards familiers, escreve Baudelaire, que se refere em seguida a uma unité / vaste comme la nuit et comme la clarté.

Ora, há nos vários sectores da evolução das sociedades modernas manifestações sintomáticas de um regresso à unidade perdida. O fim das divisões (divisão do trabalho, manual e intelectual, divisão em classes sociais; oposição da cidade e do campo; segregação racial, etc.) manifesta-se isolada ou orgânicamente numa sociedade que atinge o máximo da especialização. Esta negação da negação, passaria, pois, da aura poética ou militância moral ou ideológica à necessidade interna, funcional. No futuro a solidariedade seria uma técnica, e corresponderia a um automatismo elaborado de amor. O próprio amor perderia o carácter de exclusivismo alienante que lhe conhecemos e transformar-se-ia cada vez mais naquilo que Merleau-Ponty lhe reconhece já em germe: o constituir uma expressão da indivisão original com outrem. Entretanto é na evolução da arte contemporânea e moderna e em certas técnicas de mercado ou comerciais que poderemos melhor, sem sair do nosso tema, apreciar essa evolução possível. Antes de falarmos, pois, de publicidade, dos estudos das motivações como técnica de vendas, do papel dos «mass media», etc. – cuja compreensão é fundamental para se apreender a importância actual das artes gráficas, façamos uma rápida referência âo significado da arte moderna e respectiva compreensão estética.
O SIGNIFICADO DA ARTE MODERNA

Não é fácil tentar uma apreciação geral da arte moderna. Em primeiro lugar porque ela é múltipla. A ignorância deste aspecto não se reduz a um erro de apreciação das circunstâncias em que se verifica o processo histórico da arte do nosso tempo : recusando-lhe multiplicidade, certa crítica rouba à arte moderna o que nos parece ser uma das suas mais ricas potencialidades – a liberdade. Ora, a liberdade não pode significar a imposição de umas tantas restrições disfarçadas em regras de falsa deontologia: o horror à anedota ou à ilustração de um modo geral, ao figurativo (como, inversamente, ao não-figurativo), ao claro-escuro ou à perspectiva, etc., são absurdas limitações que uma compreensão rica da modernidade não justifica. O horror é medieval. Substituir o «horror ao vácuo» pelo horror à representação da forma natural, é não ter avançado nada na escala progressiva da necessidade para a liberdade. Isto tem dado lugar a uma comédia da crítica que lamentavelmente se põe ao reboque das modas: hoje condenando toda a conformação figurativa na basede uma engenhosa justificação teórica do informalismo, amanhã justificando com outro laborioso engenho o novo… figurativismo! Isto quer dizer que a estética moderna deveria refugiar-se num prudente ecletismo? De maneira nenhuma. (Devemos no entanto ser prudentes: um provisório ecletismo pode ser um mal menor, uma fase criadora de confrontos e ajustamentos). Há um significado de conjunto para a arte moderna? A dificuldade é que a filosofia actual tem meditado pouco sobre os fenómenos estéticos. Nem o materialismo dialéctico, nem a fenomenologia (ou o existencialismo, v. g.) deram à estética um lugar primacial, e é necessário ainda recuar a Hegel para encontrar uma visão de conjunto entrelaçada com uma visão do mundo. Claro que isto não acontece por acaso: de todas as ciências humanas, a estética é porventura a mais subtil e ambígua. Ora, numa época em que, segundo uma fórmula célebre, se trata de «suprimir a filosofia realizando-a», ou ainda, em que não tem já sentido «interpretar o mundo senão transformando-o», a obra de arte deveria trazer em si própria essa capacidade directa de transformação. A meditação estética, perante a falência da arte relativamente a essa tarefa transformadora (a arte moderna nem sequer conseguiu ainda constituir-se em estilo da vida quotidiana) aparece assim como qualquer coisa de supérfluo – o que, por certo, não corresponde à realidade profunda. As previsões de Hegel sobre a morte da Arte, consecutiva à morte de Deus e ao advento do saber absoluto, parecem encontrar assim uma inquietante confirmação. Claro que não pretendemos aqui estabelecer uma teoria geral: apenas como hipótese de trabalho admitimos que esta morte seja um contraditório renascimento; que a compreensão fundamental da arte moderna corresponde a aceitar que ela atingiu na sua fase actual um climax (difícil de compreender por nós, que o vivemos) durante o qual uma revolucionária descoberta da sua própria especificidade se resolve constantemente numa total necessidade de rompimento de todas as limitações, de todas as barreiras entre o que é estético e não é estético, entre os objectos naturais e os fabricados, em última análise apropriados pelo e para o homem. O «saber absoluto» é o saber-em-acção. Hegel não podia ter experimentado isto: que uma obra de engenharia resulte num objecto estético mesmo quando é apenas a consequência de uma apropriação matemática da natureza! A sociedade actual, que conhece pela primeira vez o mau gosto (o mau gosto anunciado pelo romantismo é um resultado da revolução industrial e tem que ver profundamente com esta fase múltipla e contraditória de socialização dos meios de produção de que somos contemporâneos) encontrar-se-á no limiar de uma época, em que tudo será estético. A morte da arte coincidirá com a descoberta da arte, propriamente dita, e a quase simultânea descoberta da sua vocação para constituir-se como a fôrma de todo o acto humano; e portanto, de toda a sabedoria humana, de todo o objecto humano. Assim, como pretendia Hegel, de facto o pensamento será, sem ambiguidade: o «ser que se pensa a si próprio», identificação dialéctica do absoluto como mediação. De este ponto de vista poderemos falar de um sentido para a arte moderna, e tratar de certas descobertas e tendências, não como regras restritivas, mas como partes que esclarecem o todo. Se considerarmos a descoberta agónica da matéria; a valorização lúcida do acaso (o «acaso objectivo» dos surrealistas); o conflito latente do abstracto e do concreto, do figurativo e do não-figurativo; o carácter ambíguo do espaço pictural, ou a tentativa barroca de destruir o espaço de certa escultura moderna – estamos a ter em conta apenas algumas etapas decisivas, e limitadas por necessária e -voluntária austeridade, no caminho da absoluta libertação de todos os limites e regras. A extrema análise e a extrema divisão significam ao extremo, uma necessidade incessante de nova síntese. Ora é neste panorama que as artes gráficas nos surgem em toda a sua importância. Pela sua função, pelo seu entrelaçamento mais íntimo com a vida prática, é através das artes gráficas que podemos entrever o futuro, ao menos como hipótese, onde um novo sincretismo expressivo corresponderá à «morte da arte», como actividade singular è distinta das restantes actividades humanas. (Neste sentido, seria curioso estudar a afinidade profunda das artes gráficas com o cinema, a propósito do qual se pode falar também de ((morte da arte». Essa afinidade, que não analisaremos aqui por, falta de espaço, é inclusivamente uma afinidade técnica).

A nossa pergunta é pois a seguinte: como podemos entrever este futuro -fim da produção de obras de arte isoladas, reino da estética absoluta – através das actuais artes ” gráficas? Antes de tentar responder a esta pergunta não queremos deixar de sublinhar que entendemos verdade absoluta como vocação, realizável, segundo a palavra de um pensador materialista, «na duração infinita da vida humana)>. Que falamos abertamente em estética absoluta, de antemão sabendo que este absoluto será mediação. Falamos todavia de entrever o infinito, o que à nossa escala humana são as estrelas que vemos, e o espaço, que os astronautas visitam já. Naturalmente que, em última análise, somos… naturalistas. Mas que coisa será o naturalismo na época das viagens siderais e do microscópico electrónico? Algo de muito novo e muito velho : que espanto se encontramos um fundo naturalista na obra de muitos pintores ditos abstractos ou não-figurativos, eco de um muro velho. e da sua matéria, ou de uma paisagem microscópica? Afinal vivemos a nossa própria ruína. Digerimos a morte, e com que rigor, que bela austeridade! Por mais que a escultura orgulhosamente reuna os detritos da nossa civilização ou a pintura se limite a explorar a sua própria matéria, nada nos livrará da agonia onde ela tiver que acontecer. Podemos imaginar o futuro (o realismo?) como a ultrapassagem do que nos limita. Não se pode abordar a compreensão da estética moderna sem sair dos limites estreitos da meditação estética. Naturalmente – humanamente, o futuro mais livre, mais rico é, no domínio do pensamento, ficção científica.

AS ARTES GRÁFICAS E AS RELAÇõES HUMANAS

«Public relations», «marketing», «mass-média», publicidade… Não é por acaso que a maioria dos termos do comércio moderno mais progressivo são anglo-saxões; também não é por acaso que até agora as técnicas mais evoluídas das artes gráficas se tenham verificado não nos países socialistas, mas nos países de capitalismo mais agressivo. Contraditoriamente, a mais fina descoberta dos meios de comunicação massiva e de influência da opinião colectiva, verifica-se nos países que cada vez têm menos coisas novas a dizer. Por outro lado, e numa fase ultrapassável senão ultrapassada já, os países imbuídos de moral revolucionária exageraram porventura a confiança nessa moral regressando a uma noção académica do dever, esquecendo o poder da sugestão e da espontaneidade. A própria noção de progresso se torna evidentemente crítica. O progresso não é exclusivo de um determinado sistema social: aquilo a que se tem chamado complacentemente, em certos sectores, a decadência, pode ser o apuramento de novas técnicas de compreensão das relações humanas, e uma capacidade de adaptação subtil às micro-sociedades de um tempo que avança confusamente para o futuro. Os «comics», as histórias-aos-quadradinhos, por exemplo, são, na maior parte dos casos, um empobrecimento relativamente à literatura tradicional. Mas nada nos garante que a sua fina adaptabilidade ao tempo actual não venha a ser o esteio de uma criação genial. Não se faz geralmente a história do teatro pré-romântico, anterior ao «Hernani », por exemplo : seria mais um exemplo apenas de quanto a novidade se não oferece na sua génese com os ouropéis da grande cultura. A história do progresso em arte é mais ambígua do que qualquer outra história, e não é cómodo desligá-la de um estudo correspondente dessa ciência jovem que é a antropologia cultural.

O que caracteriza as artes gráficas actualmente é que elas são veículo directo, senão instrumento, de uma nova síntese. Antes de mais nada: síntese das mais diversas linhas de progresso. Que elas evoluam como forma
ao serviço de um conteúdo comercial, num contexto dominado pelo investimento de capitais e pela febre do rendimento, isso não lhes retira a vocação mais íntima, a vocação a um conteúdo humano de liberdade, e onde a contradição entre o individual e o colectivo tenha ultrapassado a sua agudeza actual. São assim um dos mais ricos terrenos de encontro do progresso da tecnocracia, com a mais progressiva democracia. Encontro que as contradições do mundo actual demoram, mas que, provavelmente não deixará de verificar-se. Somente que a urgência é nossa…(…)

CONCLUSÃO

As artes gráficas tendem, pois, a reunir num objecto estético único a experiência e a explicação das coisas e de nós próprios; contribuem para que se verifique uma plenitude empírica cada vez mais vasta, um ritmo comum na vida humana. São veículo de intimidade entre os homens. Esse caminho de síntese verifica-se através e contra : a. O anarquismo do progresso das diferentes culturas contemporâneas; b. A extrema especialização e os particularismos crescentes das técnicas, inclusivé das técnicas de expressão. A obra de arte gráfica manifesta-se assim como um combate vivo a todas as divisões, um veículo de universalismo. Esse caminho para o universalismo manifesta-se lentamente (não é, claro, um caminho isolado de outros caminhos, outros factores) e acontece na medida em que as motivações propriamente estéticas se confundem com as motivações estudadas para provocar a agudização da economia das trocas comerciais e culturais. Esta identificação faz-se primeiro abstractamente, tornando-se concreta apenas na perspectiva da descoberta de um novo conteúdo para as relações humanas: as motivações da liberdade.

Neste sentido, e em particular, a obra de arte gráfica (como o cinema, por exemplo), precipita o fim das divisões entre as diferentes formas de arte, entre as artes literárias e as artes plásticas. Contribui assim para a redescoberta de uma linguagem universal, onde os respectivos signos serão significativos em si, e para si. As palavras, nesta linguagem universal previsível através das artes gráficas, curar-se-iam de todas as suas doenças, deixariam de se aparentar – a mitos ; de nos ameaçar com a sua transformação em alguma coisa letal como os mirtos dos mortos. Babel deixaria de nos ensombrar com a sua maldição.

Houve um tempo em que o pão era sagrado; e de um modo geral todos os objectos fabricados pelos homens mereciam o respeito que resultava de (para a consciência de quem os usava) mergulharem concretamente nas respectivas motivações. O objecto estético era através da mediação religiosa – inseparável da respectiva função. O naturalismo levou-nos a olhar para os objectos naturais ou fabricados com uma visão ao mesmo tempo cósmica (refiro-me ao naturalismo de um marquês de Sade, por exemplo), e indiferente. Qual seria a mãe que, no nosso tempo, diria ao filho para beijar o pedaço de pão caído no sobrado? Os objectos hoje objectam. No futuro revestir-se-ão porventura de outra dignidade que é a continuação da dignidade perdida. A palavra amor, a letra A, o pão deixariam de ser acidentes mais ou menos mortais da nossa vida quotidiana. Desacralizados seriam tão decisivos como a mais ínfima pincelada que o pintor realizou no seu quadro. A vida poderia então comparar-se a uma vasta obra de arte, tudo seria absolutamente estético. As obras de arte gráfica ajudam-nos a compreender esta possibilidade.

A história das artes gráficas em Portugal está por fazer. A iluminura, os incunábulos, a imprensa de caracteres soltos não foram ainda objecto de um estudo de conjunto que seria de grande utilidade. No começo deste século; coincidindo com a renovação dos processos de reprodução mecânica, verificou-se um grande apuro técnico e um rigor de trabalho oficinal que ainda não foi excedido: a transformação da pequena oficina para a grande unidade industrial põe problemas de tecnologia que ainda não foram inteiramente resolvidos. Em compensação com o movimento cultural e artístico que foi designado por «modernismo», as nossas artes gráficas alcançaram uma decidida expressão moderna. A este surto não foi indiferente, alguns anos mais tarde, o desenvolvimento da publicidade. Mais recentemente, depois de um período de estagnação, intimamente relacionadas não só com a publicidade como com a decoração e a arquitectura, surge entre nós um movimento de renovo gráfico, notável sobretudo quando no livro, por exemplo, atinge um grafismo de categoria internacional. A este movimento, dentro do qual se podem citar os nomes de Manuel Rodrigues, António Garcia, Sena da Silva, e sobretudo Sebastião Rodrigues – cuja importância na utilização de novas técnicas, nomeadamente a fotografia, é decisiva – pertence Armando Alves.

Consciente do que se exige hoje de um artista gráfico, Armando Alves é um técnico. Pintor, frequenta a oficina de litografia; conhece os processos e os materiais; sabe das nossas dificuldades técnicas e da exigência a que somos obrigados para as vencer. Creio, por isso, que esta exposição merece o aplauso unânime de todos nós – porque, quem é que não depende hoje, directa ou indirectamente, das artes gráficas?

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Ernesto de Sousa

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